quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

os ursos,tudo sobre esses hibernadores profissionais

As quatro estações dos ursos
São mesmo uns bichos curiosos: na primavera, cuidam da boa forma; no verão, são namorados fiéis; no outono, se empanturram; e no inverno dormem, mas não hibernam
por Lúcia Helena de Oliveira

Despertada pelo sol da primavera, após mais de três meses de sono, a fêmea pela primeira vez olha a cria com atenção. O urso, um dos mais bizarros animais da face da Terra, nasce assim de uma mãe sonolenta, cujo corpo lhe serve de felpudo cobertor no início da vida, quando apenas dorme e mama. Os bichos adultos nem sequer sentem necessidade de se alimentar enquanto dura o frio e a família não sai da toca por nada. Isso porque, no inverno, o metabolismo dos ursos faz maravilhas, reciclando as substâncias do organismo, sem perder muita coisa. Mas um urso pode de repente ficar completamente alerta por causa de um ruído e até lutar com quem o despertou.

Daí seu comportamento nos meses frios ser considerado uma falsa hibernação, o que o torna um animal ainda mais peculiar. O urso não entra para o seleto clube dos hibernantes, do qual fazem parte o esquilo e o morcego, por razões que só os fisiologistas compreendem bem. Apesar de poupar energia refugiando-se em um longo sono, sua temperatura, por exemplo, não cai suficientemente para se falar em hibernação - um estado em que o organismo está fisiologicamente à beira da morte. Assim, enquanto um esquilo quase se congela ao hibernar, os termômetros marcam apenas 9 graus abaixo do normal no corpo de um urso adormecido.

Esse singular metabolismo chega a interessar cientistas que imaginam descobrir aí novas terapias para doenças humanas. É verdade que nem todo urso dorme dessa maneira. O urso-polar não imita a hibernação como seus primos de outras latitudes, pois, além de estar acostumado ao clima invariavelmente gelado dos pólos, tampouco tem problemas de abastecimento : seu prato predileto, a foca, está ao alcance das patas o ano inteiro. De fato, há ursos e ursos, cada qual com suas manias. Ocorre que a família dos ursídeos, os últimos carnívoros que surgiram na evolução das espécies, há cerca de 6 milhões de anos, se espalhou da Eurásia para todo o globo, com exceção do continente africano.

Conforme o ambiente em que se desenvolveu, o bicho adotou hábitos apropriados e até se transformou morfologicamente, o que deu origem a várias espécies. Muitos outros animais, por serem fisicamente parecidos, são confundidos com membros da família. É o caso, principalmente, do panda, que não é ursídeo mas ailuropódeo. Certamente, o pai de toda a legítima família é o Ursus spelaeus, o extinto urso das cavernas, um feroz parente dos cães. Ao se adaptar a determinados ambientes escassos em caça, porém, certos ursos perderam os caninos afiados do ancestral. Hoje se considera que os ursos são capazes de devorar um variado cardápio: de castanhas a raízes e frutas, de peixes a pequenos roedores, de mel a insetos.

Embora cada espécie tenha suas preferências, com fome qualquer urso traça o que vier. Ou seja, é um animal carnívoro, como dizem os biólogos. No entanto, é bom que se esclareça os ursos parecem não apreciar a carne humana e só atacam o homem com patadas fatais quando se sentem ameaçados. No outono, eles se tornam verdadeiros glutões e passam vinte horas por dia mastigando o que encontram pela frente. Cada adulto começa a consumir cerca de 20 mil calorias diárias, cinco vezes mais do que o habitual. “A gula, no caso, é uma excelente tática de sobrevivência”, justifica o zoólogo Rogério Ribeiro da Universidade de São Paulo, que estuda ursos entre tantos outros bichos.

No final da estação, o urso já formou uma camada de gordura de aproximadamente 15 centímetros. “O tecido gorduroso não serve apenas como reserva de energia para o período em que o animal dormirá”, explica Ribeiro, “mas também é um isolante térmico, o segredo da manutenção de calor no corpo”. Obeso após tanta comilança, o urso procura um lugar para a temporada de inverno, que nem sempre é a tradicional toca. Os zoólogos observam que parece existir um gosto individual, de forma que alguns ursos insistem em determinada escolha ano após ano, mesmo sem ser a ideal.

Desse modo, é comum um urso-pardo, na América do Norte, perambular até encontrar um canto qualquer que lhe agrade e construir ali uma espécie de ninho a céu aberto. O animal às vezes termina coberto por um lençol branco de neve, mas isso não incomoda o extravagante dorminhoco. Quando os ursos despertam com o calor da primavera, a primeira providência é recuperar a boa forma para um namoro de verão, a época do acasalamento. Na família dos ursídeos , seja qual for a espécie, os machos têm fama de amantes fiéis, capazes eventualmente de perseguir, com a ajuda do faro apuradíssimo, a fêmea com que se acasalaram em anos anteriores. Para conferir até onde ia, literalmente, o romantismo da fera, pesquisadores espanhóis vestiram um exemplar de urso-pardo com uma coleira dotada de emissores de radar, para acompanhar seus passos. Salsero (intrometido), como foi apelidado o bicho, começou a seguir a fêmea por quem se sentiu atraído.

Esta, por charme ou impulso da natureza, correu mais de 100 quilômetros até se deixar alcançar. A história de amor teria tido logo um final feliz se não aparecesse um rival. A briga de machos por uma fêmea, no caso dos ursos, lembra cenas de filmes pastelão. Os rivais passam rasteiras, batem as palmas das patas feito inimigos desajeitados. A real intenção dos contendores não é machucar o outro, mas vencê-lo pelo cansaço. Como ganhador da luta, Salsero recebeu de prêmio os carinhos da fêmea. Mas, para surpresa dos pesquisadores, o vencido não saiu de cena. Afastado, aguardou pacientemente o dia seguinte, sabendo que teria direito às mesmas atenções, só que depois de um campeão. Pois, para as fêmeas dos ursos, as paixões parecem eternas apenas enquanto duram.

Os filhotes, normalmente um ou dois, nascem após sete meses, já em pleno inverno. Mesmo em espécies como o urso-pardo, em que o adulto chega a pesar mais de 200 quilos, as crias são pequenas e frágeis, não ultrapassando 400 gramas na balança - daí o encanto que esses bichinhos provocam. A mãe, uma exímia professora, passa dois anos e meio ensinando os filhotes a buscar comida e a se defender. O treinamento inclui várias técnicas de caça e pesca. O estilo do acasalamento e a persistência da mãe são traços comuns a todos os ursos, como também o gosto por amplos territórios. O urso-pardo, por exemplo, se irrita quando tem companhia em seu pedaço - um espaço de 200 metros quadrados.

As espécies, porém, evoluíram com temperamentos muito diferentes. Talvez em resposta a tais diferenças, os sentimentos do homem em relação a esses animais gorduchos também variam conforme o lugar. Na América do Norte, por exemplo, a relação entre ursos e homens sempre foi das mais amistosas. Os índios americanos venderam o urso como um animal sagrado, o qual, aliás, aparece desenhado em totens e amuletos. Uma lenda indígena conta que certa vez um castor, cansado de roer os cedros dos bosques, começou a devorar a lua, até a noite ficar em completa escuridão. A grande Mãe pediu então a um corvo para capturar outra lua, colocada sobre a sua casa. A partir daí o urso ficou incumbido de cuidar que ninguém roube a lua da noite. Certas tribos americanas também acreditam que os homens são descendentes dos ursos. Os europeus, por sua vez, preferem tradicionalmente o urso na mira de uma espingarda. Os antigos romanos o descrevem como uma fera, que matava ou quebrava os braços dos soldados.

Na Suíça, uma lenda atribui a fundação da cidade de Berna - depois de Zurique a segunda mais populosa do país -, em 1191, a um duque alemão que decidiu dar-lhe o nome do primeiro animal que matou na região: um urso, é claro, ou bär, em sua língua. É também o famoso símbolo de Berlim. A primeira descrição completa do mamífero, porém, surgiu em um livro de caça escrito em meados do século XIV a pedido do rei Afonso XI, de Castilha e León. Emblema de força e resistência, o urso aparece em muitos brasões europeus. Isso não impediu que até recentemente os espanhóis incluíssem ursos nas touradas - prática afinal proibida em 1973. É possível que o costume tenha sido herdado da França, pois os parisienses, até o século passado, apostavam em brigas de ursos e cachorros. O pretexto para tudo isso era a crença de que o urso-pardo, a única espécie européia fora do círculo polar, é sempre um bicho feroz.

Na verdade, o urso-pardo ou Ursus arctos, com seus 2 metros de altura, agride homens apenas quando provocado. Suas duas centenas de quilos são mantidas habitualmente com uma singela dieta à base de morangos, amoras, groselhas, raízes e, claro, mel. No entanto, em épocas menos fartas, esse animal de pelugem que varia do preto ao marrom-escuro e acobreado não hesita em atacar criações de gado. Até a Idade Média, podia ser visto em todo o território europeu. Hoje, as populações de ursos-pardos se concentram nas áreas selvagens de montanhas, sobretudo na União Soviética - quem não se lembra do ursinho Micha, mascote das Olimpíadas de Moscou em 1980?

Já na América do Norte existem três espécies de ursos, das quais a dos grizzly ou Ursus horribilis tem mais de oitenta subespécies catalogadas. Com seus 3 metros de altura e quase 800 quilos, o acizentado grizzly é sem dúvida o maior carnívoro terrestre. Bem mais forte do que um leão ou um tigre, um grizzly esfomeado ataca pequenos roedores ou resolve pescar salmões. Isso mesmo: essa é uma espécie de exímios pescadores que, sobre pedras nas corredeiras, tiram os peixes da água com ágeis patadas.

O célebre urso-polar branco ou Tharlarctos maritimus habita todo o círculo polar ártico, sobre blocos flutuantes de gelo. “É incrível como se adaptou a um meio tão hostil, tornando-se diferente do resto da família”, comenta o zoólogo Rogério Ribeiro, da Universidade de São Paulo. De fato, o urso-polar se transformou tanto, mas tanto, que mal pode ser considerado um animal terrestre, pois passa mais de dois terços da vida dentro das águas geladas. As patas e o peito são mais largos que os de seus primos de terra firme, o que lhe facilita a natação. “Além disso”, nota o zoólogo, “é o único urso cujas plantas das patas são peludas; com isso, desliza sobre o gelo como se calçasse esquis.”

Na Ásia, a família também passou por modificações morfológicas importantes. Ali, os ursos-preguiças, por exemplo, também chamados Ursus ursinus, têm um beiço semelhante ao do tamanduá para abocanhar alimentos que, na Índia, onde vivem, podem encontrar com facilidade: formigas e cupins. Suas garras também são mais afiadas e compridas pelo mesmo bom motivo, pois dessa maneira os preguiças conseguem cavar a terra. O nome preguiça desse urso de pêlo curto e crespo surgiu por causa de seu modo na infância: o filhote se agarra aos ombros da mãe e dali só sai quando, com cerca de 6 meses de idade e 10 quilos, é expulso do colo pela exausta genitora.

O mais curioso dos ursos, cujos hábitos os cientistas conhecem muito pouco e cuja população nem é estimada, é o urso-de-óculos ou Tremarctos ornatus. Trata-se do único membro da família ursídea que vive na América do Sul, nos bosques que contornam a cordilheira andina e nas montanhas com mais de mil metros de altitude na região noroeste da floresta amazônica, onde o Brasil faz fronteira com o Peru. O nome desse bicho essencialmente herbívoro é devido às manchas brancas nos olhos, que causam a impressão de que está de óculos.

Desde 1973, um acordo internacional proíbe a caça aos ursos; só podem ser abatidos em legítima defesa. A medida faz sentido. Afinal, não existem mais de 10 mil ursos-pardos na Europa. O número pode não parecer alarmante, mas é. Pois esses animais, que vivem até 30 anos, começam a se reproduzir tarde. As fêmeas geram no máximo um par de filhotes e só então se acasalam novamente. Se não houver cuidado, o urso pode engrossar a já extensa lista de animais em extinção.

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